A domesticidade constitui em Setecentos um dos lugares simbólicos na dignificação do verso efémero, uma vez que conjuga o sentido moderno da intimidade com a vida material que definirá o conforto emergente. Por esta altura, a percepção do conforto adquire o carácter de satisfação auto-consciente que vem a dominar a sua acepção moderna, na sequência de mutações ocorridas tanto no plano psico-social, como especificamente no âmbito da cultura material (*). O versejador lusitano que melhor expõe este encontro localmente, no instante crítico em que se cruza com o mimetismo proto-doméstico do retiro bucólico, é sem dúvida alguma Correia Garção. Comecemos no entanto com um curioso soneto do Abade de Jazente, porque ele nos permite situar a cena doméstica e desenhar com alguma precisão as suas fronteiras no âmbito da totalidade efémera aqui em causa. Eis um retrato setecentista da vida como ela “foi”, para quem rememora no soneto em causa:
Ora a pesca, ora o jogo, ora o passeio,
Ora da França um livro me entretinha,
E ora na casa alheia, ora na minha
Dos amigos lograva o doce enleio.
Ora a pintada truta, ora o recheio,
Ora a gorda perdiz na mesa eu tinha;
Sustentava cavalos, cães mantinha,
E via o pátio meu de pobres cheio.
Ora talvez das Musas no regaço
Cantava com cadente suavidade,
Fazendo alguma delas o compasso:
Mas tudo enfim lá vai; foi com a idade:
E somente (que tristes versos faço!)
Me ficam as lembranças, e a saudade.
Neste mundo que o autor pinta com mão efémera, abarcando as diversas esferas de uma vida, é sobretudo no espaço doméstico que a apreciação dos prazeres se pode tornar mais intensa, mormente para um espírito letrado. A domesticidade agrega a vida afectiva e sensorial do sujeito, na sua dimensão familiar, libidinal (tudo leva a crer que também no caso deste Abade tal faria parte da casa), e na convivialidade electiva com os amigos e com os livros. O tom elegíaco do soneto dramatiza a perda iminente destas “coisas” prazenteiras, até porque a descrição destaca a boa vida de um Abade em finais de Setecentos, suficientemente farto quanto a moeda para ter o «pátio» (não o templo, note-se) de «pobres cheio».
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